Participação especial

Posted on julho 14, 2010

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Enquanto os pedais não voltam ao normal, o GR tem uma convidada especial para manter os seus dois leitores acordados.  
Haja fé: 548 km de pedal (por Detlei Hasse)
 
Férias escolares. Finalmente a oportunidade ideal para realizar mais uma cicloviagem. O plano inicial era ir para SC pedalando, mas alguns imprevistos acabaram me levando a fazer novamente o Caminho da Fé. A diferença é que dessa vez fiz todo o percurso – e não apenas uma parte como da outra -, e que o PH não estava comigo – o que teria sido tudo de bom.
 
Comecei em São Carlos no dia 4/7. Fui de ônibus até lá e da rodoviária, após montar a bike, saí pedalando à procura do hotel Accácio e do início propriamente dito do percurso. Depois de perguntar a várias pessoas, que me respondiam sempre com um ponto de interrogação e me indicavam a igreja mais próxima, um guarda de trânsito soube me informar onde estava a primeira seta amarela!
 
Bora pedalar!
1º dia: São Carlos, Descalvado, Porto Ferreira, Santa Rita do Passa Quatro, Tambaú – 118 km
Comecei a pedalar às 6h20 depois de um café da manhã bem caprichado. O sol estava nascendo e mais uma aventura começando! O início foi entre os sítios da região. Os primeiros 40 km, até Descalvado, são planos entre canaviais e com muita poeira! Mas assim que passei uma placa indicando Descalvado o caminho tornou-se pedregoso e difícil para pedalar. Tanto que lembrei da subida do Japi.
Entre Porto Ferreira e Santa Rita do Passa Quatro há um trecho entre plantações de laranjas, no qual aconteceu uma história interessante. O motorista de uma caminhoneta no sentido contrário reduziu, e parou do meu lado e perguntou se eu estava fazendo o Caminho da Fé. “Sim”. Não satisfeito, perguntou se eu estava sozinha. Outro “sim”. Depois de me chamar de corajosa (aliás, ouvi isso várias vezes!), desceu do carro, pegou algumas laranjas e me deu, dizendo um “Deus te abençoe nesse caminho”. Fiquei surpresa, mas são essas situações que valem a pena em cicloviagens! O inesperado, a simplicidade e o sentimento verdadeiro que faz uma pessoa parar o carro e oferecer o que tinha para alguém totalmente desconhecido.
Cheguei em Tambaú, me acomodei na pousada Elisa, saí para comer um macarrão (estava tão cansada que não consegui comer muita coisa), chupei as laranjas, limpei a bike e as 20h30, cama!
2º Dia: Tambaú, Casa Branca, Vargem Grande do Sul, São Roque da Fartura – 91 km
Comecei o pedal às 7h20, pois a pousada só oferecia o café da manhã a partir das 7h. Na saída da cidade há o famoso portal do Caminho da Fé! Chique! Parada para foto com direito a nascer do sol! O primeiro trecho foi com bastante poeira! A bike chegava a atolar! Aliás, aprendi ali, na marra, como pedalar para não encalhar na poeira! Nunca tinha pedalado num lugar com tanta poeira assim!
Depois de pedalar uns 15 km, outro ciclista me alcançou. Que legal, mais uma pessoa pedalando, mas conversamos pouco, pois parecia que estava num ritmo mais forte que eu. Na próxima cidade – Casa Branca – encontro o ciclista novamente, descubro que se chama Fernando e que também está pedalando sozinho. Resolvemos então continuar o pedal juntos. Pedalamos por plantações de feijão, abrindo e fechando porteiras, passando por caminhos de vacas. Lá pelas 14h horas passamos por vários campos irrigados com o que chamei de chuveirinho (parece um chuveiro gigante). Ah, não tive dúvida! Pulei da bike e fui me refrescar. Que delícia!
Depois de Casa Branca há um trecho que segue uma rodovia. Ali aconteceu outro momento inesquecível que mostra como é gostoso e que vale a pena pedalar pelo Brasil! O trecho é de asfalto e de subidas. Passou ao meu lado um daqueles caminhões enormes que transportam cana. Não tive dúvidas: estendi o braço como se fosse me segurar no caminhão para pegar uma carona. O motorista me viu, reduziu a velocidade e ficou do meu lado, fazendo sombra até o alto da serra! Isso só acontece em cicloviagens! Valeu motora! Nesse trecho começaram também os morros! Lindos de ver e penosos para subir! Testa no guidão, concentração, coroinha, catracão, muita força e giro!
Mais ou menos a 10 km de Vargem Grande do Sul há uma linda serra! Durante a subida passamos por agricultores que estavam trabalhando num “chuveirinho”. Cumprimentamos e continuamos a subida. Uns 3 km depois – no meio da serra – chegamos na pousada da dona Cidinha. Nela, “seu” Francisco – marido da dona – nos ofereceu água gelada e muito papo!
Simpaticíssimo! Descobrimos que ele estava lá embaixo no “chuveirinho” e quando nos viu, pegou sua moto e subiu a serra para nos recepcionar! Quando fizer novamente o Caminho da Fé, quero pernoitar na pousada do casal, pois simpatia, água gelada e o papo foram inesquecíveis.
Mas o objetivo era continuar subindo até o ponto mais alto: São Roque da Fartura. E sobe… e sobe… e sobe… quando não há mais para onde subir, chegamos. Decidimos pernoitar na Pousada dona Cida! A casa estava toda fechada, mas havia um cartaz que dizia: “Bem-vindo peregrino, entre e sinta-se a vontade" – e o número do celular da anfitriã. Esse tipo de recepção só se encontra no Brasil! A dona Cida logo chegou e fomos nos acomodando, limpando as bikes, lavando as roupas – pudemos até centrifugar as roupas e usar o varal dela, enquanto preparava uma deliciosa janta, que saboreamos na sua cozinha, tendo como cenário o sol poente atrás das montanhas mais baixas. Lindo! Às 20h, hora de ir para cama e nanar!
3º Dia: São Roque da Fartura, Aguas da Prata, Andradas, Serra dos Lima, Barra, Crisólia, Ouro Fino e Inconfidentes – 103 km
Às 5h50 tocou o despertador. Hora de pular da cama quentinha, tomar um delicioso café da manhã e pedalar… pedalar… O trecho que Serra da Fartura até Águas da Prata é ma-ra-vi-lho-so! (acho que estou sendo ingrata com os outros trechos maravilhosos, mas não resisti!) É lindo porque está dentro de uma fazenda de café de uma com criação de gado nelore – aquele branquinho que tem orelha comprida!
Foi um tal de abre e fecha porteira até chegamos numa que estava trancada. Paciência e força para passar a bike com os alforges por cima da porteira. Aliás, foi nesse trecho que a suspensão a ar da minha bike esvaziou. Mas, o precavido do PH tinha me emprestado sua bomba de suspa! Enchemos, mas fiquei com um pulgão atrás a orelha: será que quebrou? A solução foi sossegar e prosseguir para ver no que dava. Deu num maravilhoso descidão até Águas da Prata, mas com a suspa vazia novamente.
A cidade é super limpa e organizada. Dali seguimos sentido Andradas, em mais uma serra linda com um trecho que passa pelo mato, bom para abrandar um pouco o sol que estava bem quente. E depois de uma grande subida vem… uma puta descida! A maior até aquele momento. Daquelas que se parar pra pensar dá um medão de tão inclinada que é, com muita poeira, pedras soltas e um visual de tirar o fôlego.
No final do morro era hora de descansar as mãos e os braços que doíam de tanto apertar o freio e segurar a bike. Era também o momento de almoçar, renovar o protetor do solar e tomar uma água gelada que conseguimos num posto de gasolina para encarar a tão falada e temida Serra dos Lima.
Subimos a serra, descemos e chegamos a Barra – um vilarejo que fica num vale e que tem meia dúzia de casinhas com pessoas receptivas, que nos paravam para desejar boa viagem! É interessante observar que no meio da serra há bicas de água fresca que os moradores, “constroem” para os peregrinos.
Seguimos para Crisólia, Ouro Fino (linda cidade!) e como estava sobrando pernas, continuamos até Inconfidentes – onde pernoitamos na pousada O Caipira (que fica em cima de um posto de gasolina).
Lavamos as bikes, comenos uma janta super gostosa e às 20h30 – hora de ir dormir! Doce ilusão! Impossível dormir mesmo depois de um dia inteiro de pedal, pois havia um puta movimento de caminhões a noite inteira: chega, sai, música alta, uma meleca. A comida é boa, mas dormir direito foi impossível.
4º Dia: Inconfidentes, Borda da Mata, Tocos do Moji, Estiva – Somente 60 km, para os quais levamos  8h30 de pedal!
Sabíamos que o percurso desse dia seria difícil, mas no dia anterior tínhamos pedalado tão bem… tudo bem que a noite foi péssima… mas o importante é focar nas coisas positivas… Vamos lá! Sobe… sobe… sobe… em direção a Borda da Mata e daí para Tocos do Moji. No final de uma puta subida o meu freio traseiro começou a fazer barulhos estranhos e descobrimos que eu estava pedalando há quatro dias com a roda traseira meio travada! Soltamos e… ah, bem mais fácil!
A serra para Tocos de Moji é linda! No alto é possível ver várias cadeias de montanhas! Tem-se a impressão de estar no topo da montanha mais alta! E se é uma montanha tão alta… também tem uma baita descida! Um downhill de emocionar qualquer um! Até com alforges e sem suspa a adrenalina sobe no talo!
Chegando no vale a próxima subida já esperava por nós! Víamos que seria uma subida punk. Descansamos, comemos e nos preparamos para o quebra pernas. E começamos a subir! Concentração! Força na perna, na lombar, nos braços e subimos! Foi a serra mais desafiadora de todo o percurso.
Dali a Estiva muitas plantações de morango e eu louca para provar, mas sempre lembrava do PH (“Não pode pegar sem pedir; isso é roubo!”)Tá bom! Até que encontramos o Sr José Maria, limpando e encaixotando morangos. Não tive dúvida, fui lá conversar com ele, fotografar e me deliciar com os desejados vermelhinhos diretamente do pé! E com autorização, viu PH!
Em Estiva, meu companheiro de pedal estava bem cansado e decidimos pernoitar na pousada do Poka. Lavamos as bikes, tomamos um merecido banho, jantamos gostoso e deu até para conversar novamente com um pai e dois filhos que tínhamos encontrado no começo do dia e que haviam se perdido. Às 20h, cama!
5º dia: Estiva, Consolação, Paraisópolis, Luminosa – 70 km
A partir de Estiva eu sabia que o percurso seria pedreira até Campos do Jordão, mas também sabia que não teria nenhuma serra como a do dia anterior, pois esse foi o trecho que fiz da vez passada com o PH e os Papatrilhas.
Café da manhã na Padaria do Poka com outros peregrinos! É motivador encontrar outras pessoas com o mesmo objetivo, dividindo suas conquistas! Encontramos um peregrino que parecia ter tido um AVC, pois andava com dificuldade. Ele nos contou que faz um trecho do Caminho da Fé cada final de semana! Ele com falta de tempo e dificuldade de andar; feliz da vida por ter a oportunidade de fazer o trajeto! Decidi não reclamar da minha suspa quebrada!
Sobe,sobe, sobe, desce para Consolação; sobe, sobe, sobe, desce para Paraisópolis. Hora do almoço – sanduíche e protetor solar. Sobe, sobe, sobe, desce até Luminosa! Como é linda essa cidadezinha vista do alto! E aquele puta descidão de doer as mãos e os braços de tanto frear e segurar a bike! Lá embaixo encontramos a dona Salete que nos mostrou, na montanha na nossa frente, onde estava a pousada onde queríamos pernoitar. E tasca subir mais uma montanha, mas dessa vez somente até a metade, pois a pousada fica bem no meio, com uma vista deslumbrante dos morros e da cidade lá no vale!
Na subida, a roda traseira da minha bike resolveu travar novamente e não teve jeito de soltá-la. Mas como é o Caminho da Fé, tenha fé e força nas pernocas e vamos lá! Chegando na pousada, limpamos as bikes, mas não lavamos as roupas (pois o próximo seria o último dia) e jantamos. Ovo frito das galinhas que andam soltas pelo terreiro, limonada da árvore do lado da casa, salada de alface que fomos buscar na horta e já aproveitamos para fazer o bolo de cenoura para o café da manhã. Isso tudo com muito papo com o marido da d. Inez, sua cunhada e um peregrino! Às 2h:30, cama, porque eu já estava dormindo sentada.
Ah, esqueci de contar: durante o dia, vimos vários abacateiros e eu ficava imaginando uma batida de abacate beeeem gelada! Chegando na pousada, ao lado da casa, tinha um abacateiro carregadinho! Uhm, a primeira coisa que fiz, depois de soltar a bike foi devorar um abacate. Olha que foi um dos mais gostosos que já comi na minha vida!
6º dia: Luminosa, Campista, Campos do Jordão, Piracuama, Pindamonhangaba, Aparecida. 106 km
Acordamos já sem despertador! Com gostinho de ser o último dia, loucos para terminar! Depois do café da manhã continuamos a subida da serra. Eu continuei empurrando a bike porque me sentia cansada e sabia que o trecho era difícil. Subimos das 7h30 às 11h30 quando chegamos em Campos! Todos diziam que a partir de Campista é só descer! Bobagem! É só subida até Campos do Jordão!
Chegando em Campos vimos uma cidade cheia de gente e de carros que não davam vez para atravessarmos a rua. Cansados e com as bikes pesando um chumbo, fomos carimbar e almoçar nossos sanduíches e restos do café da manhã. Ficou claro que o trecho em meio ao silêncio, a natureza, a simplicidade e ao respeito ao próximo tinha terminado.
Chegamos à civilização onde não se dá nem a vez para atravessar a rua, onde o carro tira fina da bike, onde passam carros de segurança, onde não dá para sentar na grama para almoçar porque está cheia de cocô de cachorro, não há mais água gelada nas pousadas…  de volta à realidade. Pena. Tenho vontade de terminar o Caminho da Fé, mas não, de voltar a essa realidade selvagem.
Descemos a serra de Campos e a partir daí é só asfalto esburacado, natureza degradada, ar poluído pelas indústrias. É estranho penar que de manhã estávamos lá na calma e linda Luminosa e agora estávamos aqui no meio de um monte de gente, cuidando para não ser atropelada e lutando para chegar.
 No trecho até Aparecida vimos vários peregrinos. Chegando na basílica, encontramos pessoas oferecendo hotel, tiramos fotos e o Fernando foi retirar seu certificado do Caminho. Eu me sentia um ET, pois estávamos sujos e fedidos, com bikes cheias de alforges e as pessoas nos paravam e perguntavam de onde vínhamos e queriam tirar fotos conosco.
D partir da igreja fomos direto para a rodoviária, compramos passagem para SP e descobrimos que teríamos que esperar duas horas. Tempo para comer, relembrar e festejar! Às 22h30 eu já estava em casa, louca por um banho e com o sentimento de ter conhecido mais uma parte linda do Brasil, pessoas maravilhosas e de ter realizado mais um sonho e percebido novamente que sou feliz em meio a simplicidade!
Adoro fazer cicloviagens, pois é o momento que vejo que sou feliz com pouco, que não preciso de grandes tecnologias ou badalações e descubro que ainda há pessoas boas no mundo!
Até a próxima!
Detlei
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